em dois mil e doze mudámo-nos para o campo de santa clara. a margem do rio, ali à beira, era o sítio perfeito para correr. e as primeiras corridas foram boas.
um dia, depois de fazer pouco mais de quinhentos metros, começou a doer-me o joelho direito. parecia que estava inchado, mas só por dentro, não o conseguia dobrar.
foi assim durante meses, um ano ou quase dois. a andar não doía, de bicicleta também não, a jogar à bola (que envolve bastante corrida e mudanças bruscas) não doía e a fazer yôga era igual.
seguiram-se meses de consultas e exames, todos limpos — só faltou uma TAC. por dentro tenho dos joelhos mais bonitos do mundo. era da forma como colocava os pés, disse o médico.
e entretanto mudámos de casa.
comprei uns ténis novos e fui desafiado para uma corrida de dez quilómetros. recomecei a correr. e fui forçando, fazendo distâncias maiores, com um joelho elástico e sempre com dores. mas das cinco, nove: ou isto partia e íamos perceber de onde vinha o problema ou as dores passavam.
e passaram. mais ou menos. mais ou menos, sim.
catorze de outubro de dois mil e dezoito
no dia seis de maio de dois mil e dezoito comecei a treinar para a maratona.
tinha já feito algumas distâncias longas e algumas meias-maratonas, sem surpresas, com resultados medianos. os treinos longos preocupavam-me — não por serem longos, propriamente dito, mas porque a vontade de os fazer podia falhar.
falhou pouco. treinei durante vinte e duas semanas, seiscentos e vinte e oito quilómetros. achava que estava preparado, no entanto, a pensar que devia ter feito mais um treino longo, acima dos trinta, era esse treino que ia fazer toda a diferença.
no dia treze acordei com uma cãibra no gémeo direito. foi a segunda este ano (e na vida). da primeira vez até saltos dei na cama agarrado à perna — não o suficiente para acordar mais ninguém naquele quarto, aparentemente. levantei-me, coxeei um pouco até à casa de banho, passou e não deu mais problemas.
a prova estava marcada para as oito da manhã, mas, por causa do mau tempo no dia anterior, foi adiada para as nove. uma hora de diferença que de pouco serviu, excepto para dormir um pouco mais e atrasar-me o almoço.
o dia. levantei-me às seis, tomei o pequeno-almoço e fiz uma caminhada nas glamorosas ruas de alfragide. às sete estava a caminho e um pouco antes das oito no local da partida, em cascais.
escassas quatro horas e vinte e três minutos depois entrava triunfante no terreiro do paço.
comecei bem. consegui ir sempre dois ou três segundos abaixo do ritmo médio que tinha planeado e sentia-me bem. até ao quilómetro dezassete. começou a doer-me o gémeo direito, no exacto sítio da cãibra — e tanto que ainda faltava. comecei a abrandar o ritmo, quando tentava acelerar o passo a dor voltava e o ritmo foi abrandando. foi desmotivante
não foi uma corrida a sofrer, nem parecido. era ter vontade de ir mais rápido e saber que conseguia ir mais rápido se não fosse aquele ponto muito específico do gémeo a travar. ver a ponte vinte e cinco de abril, em algumas zonas do percurso e por uns momentos pensar: é já ali. mas não só o já ali era ainda muito longe, como, em chegando à ponte, ainda faltariam cinco quilómetros. e aquele ponto muito específico do gémeo a travar.
já em lisboa ainda parei duas vezes para alongar tranquilamente. o mal já estava feito.
o último quilómetro passou num sopro.
to télos
a distância, os números da distância, incomodam-me. não há motivo para não ser um número inteiro e redondo. a lenda em que se basearam para a criação desta prova é, como diziam os antigos, uma boa lenda e não havia necessidade de terem ficado com estes números apenas porque foi assim nuns jogos olímpicos.
de qualquer forma, esta é a distância que temos, a que tem gravitas, esta é a prova. e a verdade é que fui sentindo isso em alguns momentos da corrida — estava a correr uma maratona. especialmente, sem grande surpresa, ao passar no pórtico de partida e na entrada no terreiro do paço, antes de contornar e passar o arco da rua augusta — estava a terminar uma maratona.
nos primeiros dez minutos da manhã seguinte as minhas pernas não queriam andar.