em dois mil e dois os meus pais compraram uma casa. a anterior dona deixou ficar um soprador de folhas, um corta-relvas e um cão.
um rafeiro de oito meses, todo preto, metade pastor alemão e metade labrador. ia mandá-lo para o canil, mas os meus pais aceitaram ficar com ele e tornou-se o primeiro cão da família. o cão que veio com a casa.
a anterior dona era uma merda de pessoa. uma que lhe batia com a mangueira e o deixava fechado num viveiro de pássaros que parecia uma estufa. por isso, no início, era medroso e desconfiado. não nos podia ver regar o quintal.
mas era tão meigo.
caçava, coelhos em particular. deixava-os, naturalmente, à porta de casa. sempre agradável. vi-o cavar um buraco com uns cinquenta centímetros e apanhar um rato do tamanho de uma chávena de café.
detestava ciclistas. e foguetes.
queria sempre festas. podíamos ficar horas naquilo. se, por qualquer motivo, ia um instante à rua ladrar voltava para mais uma sessão como se a anterior nunca tivesse acontecido. se passássemos por ele quando estava deitado lançava-nos a pata aos pés para que lhe coçarmos a barriga. horas naquilo.
vai deitar, tomás.
costumava fugir por uns buracos na rede, chegou a estar duas semanas desaparecido. de quando em vez era veterinário com eles, uma vez para suturar o lábio porque quando fechava a boca o canino ficava do lado de fora. tinha um pequeno rasgo na orelha direita.
numa das idas, acho que para vacinas, quis subir para o meu colo. inédito. fiquei sentado na sala de espera com um cão de trinta e cinco quilos em cima das minhas pernas.
doze anos, quase treze.
o pelo do focinho ficou branco. nem sempre nos ouvia chegar e dessas vezes, claro, já não nos esperava ao portão. aproveitou-se disso para abusar dos petiscos e dormir na minha antiga cama. prerrogativa de ser cão velho naquela casa.
andava a comer mal. custou-lhe subir para o carro na última vez que fomos ao veterinário. era a próstata. voltámos com tudo controlado e melhorou um pouco.
no dia vinte e oito de agosto pela manhã comeu tudo, correu um pouco, ladrou. o coração, talvez. à noite, a caminho do veterinário, morreu.