este site é um trabalho em curso, é um exercício. estou a fazer este remodelação ao vivo e a cores.

indy

na primeira noite que ficou connosco arrancou a grelha do rodapé dos armários da cozinha e escondeu-se lá debaixo. de manhã tivemos de desmontar o rodapé todo e colar a grelha com fita-cola. no final da semana seguinte deitou-se pela primeira vez ao meu lado, a ronronar.

gostava de queijo da ilha.

não gostava da varanda do sétimo andar. mas passava horas deitado no parapeito da janela da sala. no corredor, faziam a curva pela parede.

foi giro vê-lo passar de gato que vomitava com nervoso miudinho, que se assustava — aqueles fantásticos pulos de mola — com a própria sombra ou uma brisa fresca, por um que parecia gostar do barulho dos camiões do lixo em lisboa. que passeava pelo quintal da última casa, saltava o muro e andava na estrada, quase a fazer jus ao nome que lhe deram.

horas passadas, de madrugada, a raspar na caixa.

dormia à sombra da roseira quando o calor apertava. ou dentro do carro. ou na casota que estava junto ao muro.

companheiro de noites de trabalho, ao colo, ou deitado na mochila ou num casaco em cima da secretária. a maior parte das vezes teimosamente encostado ao braço e ao computador.

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15/04/2017

não perdia uma oportunidade — estava lá em menos de nada — para se alapar no colo. boas noites de sofá e televisão. mesmo quando estava frio e os pés enregelavam.

explorador nato de sacos e ocupa extraordinário de caixas vazias. coisas que já não se fazem.

merda dos rins.

dia dezassete de abril, depois de almoço, no veterinário, morreu.

tomás

em dois mil e dois os meus pais compraram uma casa. a anterior dona deixou ficar um soprador de folhas, um corta-relvas e um cão.

um rafeiro de oito meses, todo preto, metade pastor alemão e metade labrador. ia mandá-lo para o canil, mas os meus pais aceitaram ficar com ele e tornou-se o primeiro cão da família. o cão que veio com a casa.

a anterior dona era uma merda de pessoa. uma que lhe batia com a mangueira e o deixava fechado num viveiro de pássaros que parecia uma estufa. por isso, no início, era medroso e desconfiado. não nos podia ver regar o quintal.

mas era tão meigo.

caçava, coelhos em particular. deixava-os, naturalmente, à porta de casa. sempre agradável. vi-o cavar um buraco com uns cinquenta centímetros e apanhar um rato do tamanho de uma chávena de café.

detestava ciclistas. e foguetes.

queria sempre festas. podíamos ficar horas naquilo. se, por qualquer motivo, ia um instante à rua ladrar voltava para mais uma sessão como se a anterior nunca tivesse acontecido. se passássemos por ele quando estava deitado lançava-nos a pata aos pés para que lhe coçarmos a barriga. horas naquilo.

vai deitar, tomás.

costumava fugir por uns buracos na rede, chegou a estar duas semanas desaparecido. de quando em vez era veterinário com eles, uma vez para suturar o lábio porque quando fechava a boca o canino ficava do lado de fora. tinha um pequeno rasgo na orelha direita.

numa das idas, acho que para vacinas, quis subir para o meu colo. inédito. fiquei sentado na sala de espera com um cão de trinta e cinco quilos em cima das minhas pernas.

doze anos, quase treze.

o pelo do focinho ficou branco. nem sempre nos ouvia chegar e dessas vezes, claro, já não nos esperava ao portão. aproveitou-se disso para abusar dos petiscos e dormir na minha antiga cama. prerrogativa de ser cão velho naquela casa.

andava a comer mal. custou-lhe subir para o carro na última vez que fomos ao veterinário. era a próstata. voltámos com tudo controlado e melhorou um pouco.

no dia vinte e oito de agosto pela manhã comeu tudo, correu um pouco, ladrou. o coração, talvez. à noite, a caminho do veterinário, morreu.

simão

it’s going to end badly. you’re purchasing a small tragedy. […] unless you’re in your eighties and buying a tortoise.

não estava vivo há mais de uma hora e já a minha mãe — que não queria outro cão — o tinha numa mão incapaz de o devolver ao lixo onde fora encontrado dentro de uma luva. a mãe dele era a minha e sempre foi.

no dia em que nasceu foi, com cólicas, pela primeira vez ao veterinário. durante a primeira semana foi lá mais três vezes de emergência com mesmo problema. sem os nutrientes e imunizações do leite da mãe estava mais frágil e susceptível. as hipóteses dele eram menos que poucas. durante as três primeiras semanas custou uma pequena fortuna em leite em pó e teria valido a pena nem que fosse só para lhe poder dar o biberão.

ajudei-o a comer nestum — numa gamela agora bem mais pequena que a pata dele — e limpei-lhe o leite do focinho.

todos os dias de manhã a minha mãe saía para comprar pão, ele ficava à espera que ela chegasse para lhe dar uma broa de mel. ela ensinou-o a pedir dando a pata. uma técnica que ele aperfeiçoou para pedir tudo: era assim que ele pedia comida, festas e para lhe abrir a porta.

adormeci-o no meu colo.

só pôde tomar as primeira vacinas quando fez três meses, até lá tinha um atestado médico para não pôr uma pata na rua. por isso, quando eu saía e tinha de o levar comigo, ele ia no meu colo a espernear e a ganir com todas as forças. com dois meses já era maior que um leitão e pesava vinte quilos. aquelas saídas eram um exercício brutal para os meus braços e impiedosas para a minha dignidade.

deixei de comer carne por causa dele.

o momento decisivo

os meus pais tinham uma casa que precisava de obras para se tornar habitável. tinha-me despedido há pouco tempo e decidi tirar uma semana de férias, ir para essa casa e levá-lo comigo. era eu, ele e o outro cão que tinha vindo como extra com a casa.

a minha ideia era passar a semana a cavar, fazer coisas de homem. mas foi passada a beber cerveja e a ler.

dormi em cima de um colchão no meio da sala e tapava-me com um saco cama. ele tinha uma manta ao lado do colchão.

acordei a meio da primeira noite quase a cair do colchão. ele tinha-se deitado e ocupado mais de metade. expulsei-o. de manhã estava lá outra vez. na noite seguinte repetiu-se o sketch. à terceira noite desisti: 3/4 da cama eram dele. and so it begins.

aos seis meses era do tamanho de uma ovelha e pesava mais que uma vila etíope, demasiado grande para o apartamento. teria de ir para a outra casa, aquela com espaço.

eu ia ter com ele todos os dias [até porque tinha de lhe dar comida], cada vez mais tempo. até que, já depois de ter começado a trabalhar: mudei-me.

a minha cama voltou a ser um colchão no chão. ele dormia numa manta ao lado.

gostava de areia.

não sei explicar afectos e não há dedos num corpo para contar as conversas ao lado. mas também não me interessa. a bem da verdade: quero que se fôda. that is all.

the end of heartache

o ano passado desmaiou algumas vezes. um problema no ventrículo esquerdo. um problema com demasiadas sílabas para eu decorar. três comprimidos por dia para o resto da vida. controlado.

na última semana do ano começou a fazer retenção de líquidos. depois um edema pulmonar. afinal sempre fora de controlo.

no dia três de janeiro, meia-noite e cinquenta, morreu nos meus braços.